sábado, 1 de novembro de 2008

FIDELIDADE ASSASSINA (parte 1ª/5)

— Justino — gritou uma voz feminina, decrépita, do corredor que levava dos quartos ao banheiro da fazenda.
Na cozinha, o mulato sarará estremeceu com o grito. Durante os oito últimos anos enraizara-se o pavor que medrava em seu peito ao ouvir aquele grito, quase dia após dia.
— Pode servir o café — completou a voz esganiçada de dona Amélia, no mesmo tom usado para chamar o seu protegido.
Protegido. Era assim que Justino era conhecido por todos, o protegido da casa-grande da fazenda Ouro Verde, situada no sul de Minas Gerais. Aos dez anos, fora ali deixado pelos pais, camponeses que abandonavam as lavouras de café em crise juntamente com centenas de outros, para tentar ganhar a vida nas cidades. O governo do único mandato presidencial eletivo de Getúlio Vargas havia arbitrado queimar café para revalorizar o produto; então, montanhas de café foram incineradas, sob a mira das armas embaladas do Exército. A irrisória indenização paga pelo governo provocou a falência de muitos cafeicultores. A crise fustigou toda a região, reduzindo drasticamente a produção da Ouro Verde. Francisco Alvarenga, proprietário da fazenda e marido de dona Amélia, foi obrigado a dispensar muitos empregados, entre eles João do Carmo e sua mulher Jandira, pais de Justino.
Justino remexeu os teréns do café de maneira canhestra. Reunindo coragem, ousou replicar dona Amélia, dizendo-lhe que a mesa já estava posta e que se apressasse, senão o café ia esfriar no bule. Enquanto isso, passeou os olhos pelas gamelas alinhadas em cima de um aparador onde jaziam os leitões abatidos, ainda naquela madrugada, para as comemorações do dia de Ano Novo. Cobriu as vasilhas com uma toalha. Lembrava-se, de um modo muito obscuro, do dia da partida dos seus pais. Tinha imaginado que eles o levariam também para a cidade, mas ficara surpreso quando Jandira, depois de conversar em particular com seu Chico Alvarenga durante um bom tempo no escritório dele, pegara-o pela mão e o entregara a dona Amélia. Em seguida, sua mãe subira com João do Carmo para a traseira do carro de bois, foram-se embora e nunca mais deram notícias.
(continua na próxima postagem)

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