segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

CRÔNICA SOBRE O CRONISTA

Para todo cronista sempre chega o momento fatal em que, talvez por falta de assunto, ou por pura vaidade, quer falar de si mesmo. Às vezes, com propriedade
De cara, enfrenta um problema: não pode falar bem de si mesmo, porque não é ético sair por aí atirando pétalas sobre a sua simpatissíssima pessoa. Também não vai querer falar mal de si, porque, se não é um consumado cretino, também não é nenhum imbecil. De forma que generaliza, ou sai pela tangente, classificando outros sujeitos da crônica com as qualidades que gostaria de ter e exibir devido à sua superestimada personalidade.
Apesar de, necessariamente, possuir espírito crítico, o cronista não se revela, no seu trabalho, um crítico na acepção mais apropriada da palavra. O crítico faz crítica, que é a “arte ou faculdade de julgar produções ou manifestações de caráter intelectual”, segundo define o dicionário virtual Miniaurélio no primeiro significado da palavra.
O cronista é, antes de tudo, um abelhudo. Mete o nariz em toda parte. E até onde sua ação extrapola a sua competência, conforme o ponto de vista dos incomodados com o que escreve! Não é de se admirar que se torne um ser solitário. Ninguém quer a companhia de um sujeito considerado chato quando dizem que divulga ações constrangedoras da vida alheia, ao invés de, como rotineiramente ocorre, narrar histórias românticas, edificantes, ou até as que mostram apenas bom humor.
Como não poderia deixar de ser, como autor de textos de pretensa composição humorística, faço minha autocrônica revelando aspectos do meu lado tragicômico e da minha sensibilidade, às vezes aérea, do mundo à minha volta.
Relato, na crônica Minha cunhada Marlene, um flash acontecido com ela, naquele caso como distraída agente de uma invasão a um veículo que a percepção dela apontava como um táxi em serviço. Neste caso, que ora conto, ela entra apenas como coadjuvante.
Faz muitos anos, Marlene estava no pequeno jardim,à frente da varanda da casa do pai dela, meu sogro Paulo Pimenta de Oliveira. Conversava com a Maria Benedita, na época funcionária da ex-MinasCaixa, agência de Santa Rita do Sapucaí, que aproveitava um feriadão para passear e rever sua amiga de Boa Esperança e também colega de trabalho.
Eu estava esparramado numa cadeira da varanda. De férias. Um livro de ficção — meu tipo predileto de literatura — acorrentava minha atenção. Mas um ouvido, o direito, estava mais ou menos ligado na conversa entre as duas colegas (o ouvido esquerdo não podia ligar-se em nenhuma conversa, ou som, pois era absolutamente surdo, por efeito das centenas de decibéis suportados nas discotecas frequentadas na juventude).
As duas comentavam sobre notícia do ex-presidente Emílio G. Médici —. E, quando uma delas disse: — O Emílio falou... — eu, bestamente, indaguei: — O Emílio faaala? — referindo-me, parvamente, ao mavioso canário-belga — pendurado na parede ao lado —, que minhas cunhadas haviam apelidado com aquele nome. Marlene me disse, sorrindo ante meu espanto: — A nomeação do pássaro é uma simples homenagem ao ex-presidente.
Se eu era capaz de confundir um canário-belga cantador com a figura do ex-presidente Emílio, que, de semelhança musical com o famoso tenor Pavarotti só exibia sobrenome italiano, podia-se esperar proezas ainda mais espetaculares do meu sistema nervoso. Que, aliás, para ser honesto, devia ser chamado de sistema calmoso!
Agora, vou contar um acontecido do qual participou meu sogro. Mas, antes, procurarei fazer dele um retrato, breve, mas que pretendo suficiente para que se capte o ser complexo vivido por ele, e sua ótima atuação na história.
Entre as muitas qualidades de meu sogro Paulo Pimenta, como era conhecido em toda a Boa Esperança, destaco a hombridade e a seriedade. Homem de caráter firmado em bases sólidas, usufruía do respeito e admiração de seus concidadãos, pelos traços marcantes da sua personalidade. E, também, por ter superado muitos obstáculos na formação de uma família modelar, que fez jus ao legado maior que deixou para a posteridade: o tesouro do seu exemplo.
Mas o senhor Paulo era muito mais do que isso, Afetuoso com os familiares, tratava a todos que o cercavam com atenção carinhosa. Adorava conversar, saber de todas as conquistas sociais ou tecnológicas realizadas pela humanidade. Novos conhecidos eram muito bem-vindos e tratados com urbanidade consciente.
Eu acho que fui um dos felizardos que teve a sorte de cair nas boas-graças do meu sogro. É um fato que posso afirmar sobre o nosso relacionamento, e só isto já me satisfaz.
De forma que, quando ele se aposentou, estando eu em Boa Esperança a serviço da inspetoria da ex-MinasCaixa, nós fomos almoçar. Após toda refeição, sempre calhava de acontecer uma pequena reunião, na sala do almoço mesmo, de três, quatro ou cinco familiares com visitantes, ou mais se não era dia útil ou se tratava  de um feriado.
Nessa reunião, o senhor Paulo expunha a sua opinião sobre determinado assunto, mas agora não me lembro mais qual era o assunto, e, muito menos, a opinião. O senhor Paulo era discretíssimo e não exibia o que sabia ou intuía sobre as pessoas, Mas não regateava elogios, quando merecidos, evidentemente, porque era um homem que não sabia desmerecer ninguém.
Eu, simplesmente, não ouvia nada do que ele.dizia. Devia estar em um planador, onde imperava o silêncio, num vôo solo estratosférico aonde não chegava qualquer sinal proveniente do mundo lá embaixo. Na verdade, “eu viajava na maionese”!
O senhor Paulo — que possuía, também, um afiado espírito crítico dotado de apurado senso de humor, não me esperou descer das nuvens. Dirigindo-se às outras pessoas presentes, iniciou, em tom monocórdio, essa lengalenga:
— Então, nós saímos para pescar, conforme o combinado. Para isso, levamos um saco cheio de parafusos sextavados, que serviriam de isca. Os peixes seriam fisgados com um martelo de borracha feito na oficina do fabricante de selas para cabritos. De repente, o capitão do iate, que nunca havia fisgado nem um contrato de café com o Banco do Brasil, ao passar por um cardume de pares de sapatos novos, deu uma martelada certeira num par dourado — e o senhor Paulo esticou bem os dois braços — desse tamanho...
Eu, despencando da estratosfera para cima da mesa da copa, atiçado pelo meu amor às pescarias, perguntei, lerdamente:
— Onde foi isso, gente? De que tamanho mesmo era o dourado? O cara pegou um par? Dois, de uma vez só, e desse tamanho?
Foi o suficiente para o pessoal ao redor da mesa cair na risada. Eu fiquei abobalhado, sem entender o que acontecera. Só depois que me explicaram foi que eu pude rir, também.
                                            
                                                              F I M

2 comentários:

marlise disse...

Aí, Lá! Gostei. Continue postando. Abraços.

Anônimo disse...

Olá, Ise,
Vc continua prestigiando Literatema com sua presença!
Abrs do Lamartine Miranda.