quinta-feira, 15 de maio de 2008

ZÉ BOM CABELO 2 (parte 2ª/2)

(continuação)
Incomodado com a estranha carência que o acometia, remexeu-se em sua cadeira, olhando para os lados, apenas na desconfiança fiando, como se todos na sala lhe adivinhassem a sandice. Resolveu, assim mesmo, satisfazer o repentino gosto. Com uma desculpa qualquer, pediu licença e tomou o rumo do seu quarto. Cuidou, ao entrar, para que a porta ficasse bem trancada. Sentou-se à beira da cama. Escarafunchou com as unhas a parede, aumentando uma falha que já existia, e retirou um pedaço de reboco, levando-o diretamente à boca.
A mistura de areia, terra e cal soube-lhe áspera ao primeiro contato com a língua. Depois, a saliva umedeceu-a, até que era gostoso. E Bom Cabelo passou a entreter-se, tranqüilamente, com a inédita refeição.
Passou alguns minutos dedicado à tarefa de retirar a greda e mastigá-la, e irritou-se ao ouvir baterem à porta.
– Quem é? – perguntou, suspenso.
– Sou eu, Zé! – respondeu sua mulher. – Que é que você está fazendo aí trancado, hein?
– Nada, não, mulher. Estou descansando.
Dona Mariquinhas, desarrazoada com o inusual descanso, não se deu por vencida, “onde já se viu, depois de velho este negro deu para ter repentes?” E continuou:
– Abre a porta, Zé.
– Não chateia, mulher. Tô só dando uma cochiladinha.
– Abre, Zé!
E o abre-não-abro continuou, por alguns instantes. Zé só se enchendo, a Mariquinhas estava fazendo uma atrapalhação danada...
Do meio da sua vergonha, então, surgiu a velha caradurice armando um espantalho para a sua confusão. Por quê, pensou lá com seus botões, não podia fazer o que bem entendesse? Estava com a família criada, não estava? Não devia nada nem dependia de ninguém, pra que ter vergonha de alguma coisa? Se devesse ter, seria de estar agindo igual a menino moleque que se esconde para fazer coisa feia.
Decidiu-se. Com a colher usada para tomar o xarope noturno, tirou um apetitoso torrão que se desenhava nas rachaduras da parede. Mastigando um enorme pedaço, abriu a porta e disse para dona Mariquinhas, soprando poeira:
– Aqui, ó, o que eu estou fazendo! Estou comendo terra. Terra, tá vendo? Êta mulherzinha curiosa, sô!
Voltando para a sala, ocupou a sua cadeira, em frente da gloriosa Sônia Braga, onde refestelou-se mordendo grandes nacos do torrão que tinha na mão – para o espanto geral da família – com o inarredável sorriso nos lábios, afirmada confirmação...
F I M

2 comentários:

Anônimo disse...

Oi Lá,
Maravilhoso o conto, adorei.
Quem me dera escrever assim...
Vá em frente, pois vc é ótimo!
Abraços da,
Lulu

edson disse...

Caro Lamartine...

Parabéns pelos seus escritos...Vi tudo, gostei de tudo...
Edson