sábado, 7 de junho de 2008

MANGALÔ, TRÊS VEZES! (parte 1ª/3)

Segunda-feira. Dez horas da manhã. Cícero aguarda a hora de sair de casa para trabalhar.
— Cícero — grita da cozinha sua mulher —, vai lá no terreiro e traz umas folhas de couve pra mim.
Ele se levanta da poltrona, onde lê o único semanário editado na cidade, e chega à porta.
— Não vou lá, não, Miloca. Já disse que não posso...
— Ó homem! Você não vê que eu estou ocupada, ajudando a Benedita a fazer o almoço, e que preciso da couve?
— Eu não posso ir lá! — Dá alguns passos na direção da mulher, abanando as mãos. — As galinhas podem pensar que eu sou milho...
Irritada, Miloca enxuga as mãos no avental. — Vai até lá e pega a diaba da couve, homem. As galinhas não vão comer você não. Você sabe que não é milho.
— É. Eu sei. Mas as galinhas, não...
O mecanismo avariado que existe dentro dele guia-o, depois do almoço, pelas ruas da cidade rumo ao trabalho. Em determinada esquina, apresenta-se um dilema que desafia Cícero. Não consegue definir qual pé utilizará para descer da calçada. Cuidadosamente, pousa o pé direito nos paralelepípedos da rua; mas, antes que o pé toque realmente o chão, ergue-o delicadamente de volta à calçada. Refaz os gestos com o outro pé, e assim por diante até que, aparentando concordar com algo por extremo íntimo, um dos pés efetivamente o desça e faça-o atravessar a rua. O que não impede que o mistério — arbitrário e mandão como um ditador — resolva manifestar-se aleatoriamente em qualquer outra esquina por onde lhe der a veneta de ir passear. Não raro, volta do meio da rua e repete o ritual. Demonstra uma elegância sofisticada, e um ar de tão fleumática naturalidade na resolução desses freqüentíssimos ataques, que um passante que não o conheça não achará esquisito que dedique tantas pausas, avanços e hesitações ao ato aparentemente tão simples de descer de uma calçada. Já os seus conhecidos têm mais o que fazer para ficar prestando atenção nele.
(continua)

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