terça-feira, 10 de junho de 2008

MANGALÔ, TRÊS VEZES (parte 2ª/3)

(continuação)
Na repartição pública, que chefia, Cícero franqueia a porta principal, e depois abre o cofre. Gasta, nessa operação, um esforço extraordinário. Como se o cofre tivesse capacidade de se lhe opor e vontade suficiente para continuar fechado. Segundos após, ligeiramente ofegante e meneando a cabeça descontente, fecha o cofre; gira a roda da tranca e o disco do segredo e revira a chave na fechadura. Normalmente, repete o ato três vezes. Há dias, porém, que só fica satisfeito depois da quarta ou quinta tentativa. Isso é válido também para a abertura da porta da frente, mas tudo se transformou numa rotina tal que nem mais incomoda e sequer provoca o riso disfarçado dos colegas ou dos usuários da dependência. Pelo contrário, o chefe da repartição conta com o respeito de todos.
Pereira, o subchefe, traz uns documentos que precisam da sua assinatura.
— O despachante está esperando, Cícero.
— Me dê aqui — diz ele, apanhando os documentos. Pereira volta ao balcão.
Ao assinar a página treze do processo, ele larga a caneta, dá três toques discretos com os nós dos dedos sobre o tampo de madeira da mesa, e esconjura, camuflado atrás da pasta:
— Cruz credo! Pé-de-pato, mangalô, três vezes!
Terminado o expediente, Cícero dirige-se ao consultório do doutor Isildo. Há mais de um ano que se trata com o psiquiatra. É sempre acompanhado, até a porta do consultório, por amigos que o esperam conversando e fazendo hora na frente da repartição. Os componentes da turma variam, mas comparecem a todo fim de expediente. Há quem seja inativo; outros ainda trabalham, mas já o esperam, também, pois o serviço de Cícero, por força das particulares circunstâncias, demora mais para acabar que o deles. Esperar Cícero sair é um hábito antigo. Cícero é bom de prosa, culto (estudou no Caraça) e sabe se mostrar engraçado — apesar de seu estado razoavelmente depressivo — ao narrar um caso. Além disso, moram todos mais ou menos para o mesmo lado.
Cícero, ao sair, encontra José Leite, Hélio da Lilia, Raimundo Nonato, Tatão e o Major à sua espera. Descem a rua devagar, conversando, na direção do consultório do doutor Isildo. Cícero evita cuidadosamente pisar nas poças e nas listras da calçada. Às vezes pára, volta um ou dois passos e se adianta novamente sobre o risco. Os seus amigos, pacientes, o aguardam, diminuindo um pouco mais os passos. Conversam sobre a terapia do amigo.
(continua)

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