terça-feira, 26 de agosto de 2008

MANIA (parte 2ª/3)

(continuação)
A família, ao ver-me com a boca cheia daquele pó branco, careteando, berrando, a lata de formicida em acintoso destaque sobre o criado-mudo, entrou em pânico: “Vamos, gente!” – ordenou a minha sogra, que morava conosco – “chamem logo o doutor, ele está em casa, chegou agorinha mesmo, eu vi”.
O bicarbonato escorria leitoso pelos cantos dos meus lábios e efervescia molhado com a saliva, embolhado com meus sopros de agonia. Isso me aborrecia pelo desconforto, mas não atrapalhava a representação. Como eu estrebuchava e me contorcia tão bem, e como revirava e esbugalhava os olhos com tanta perfeição! Tenho certeza que meus gemidos eram ouvidos e temidos em todo o quarteirão, quem sabe ainda mais longe, tão altos e horrorosos eram.
Atraído pela balbúrdia, breve havia um povinho instalado no quarto, outro na sala e gente do lado de fora, no alpendre, forçando a entrada.
Para meu gosto, ou desgosto, a chegada do médico foi rápida demais. Quantos esgares diferentes eu ainda podia simular para a delícia daquela platéia ávida que me assistia, quantos urros de dor eu ainda podia gastar fingindo o estertor, apesar das limitações que me impunham a tosse tísica e a boca cheia do espumante pó!
O doutor como que parou à porta... eu vi, com o rabo de um olho. Já me conhecia muito bem, se já! E seu instinto profissional lhe deve ter segredado, só de ouvir lá de fora os meus berros, que ali havia treta; mais que vi, senti que ele não teve, para me atender, a urgência que eu imaginava carecessem os pacientes envenenados. Cheirou rapidamente a lata, que alguém lhe entregou. Pegou meu pulso, olhou para o relógio que tirou da algibeira. Parecia que ia ficar assim eternamente, casmurro e rabugento, naquela pose clínica. Não me dei por achado, no início, e continuei com a encenação.
Momentos depois, malgrado a concentração e o esforço que eu dedicava ao meu teatro, sem querer caí na bobagem de olhar para os basbaques de olhos arregalados, para a cara séria e aborrecida do doutor e entrevi a família contritamente reunida, minha sogra com um rosário na mão. Não agüentei mais, e, então, um acesso de incontido riso, entremeado de tosse miudinha, veio borbulhando ruidoso do fundo do meu peito: - Uuuummmmm ah ah ah tosse qua qua qua tosse ah ah ah...
(continua)

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