sexta-feira, 14 de novembro de 2008

FIDELIDADE ASSASSINA (parte 3ª/5)

(continuação)
Justino estava sendo muito requisitado. Andava de um lado para o outro, ora providenciando açúcar, ovos, canela em pau ou em pó, farinha de trigo, manteiga ou outros condimentos para os bolos, sonhos e pudins de Luzia, ora descascando, dividindo ao meio e descaroçando goiabas vermelhas para as compotas de frutas de dona Filomena; ou colhendo cheiros-verdes na horta para temperar os embutidos fabricados por Lourdes e Matilde.
Soaram duas horas da tarde no esbelto relógio de pedestal, encastelado na caixa de jacarandá adornada com entalhes de motivos silvestres, da sala de visitas. O grande forno convexo ainda não fora aceso. Pedro Paulo chegou ao telheiro junto com Gaspar e Baltasar, dois rapazes com idades aproximadas à dele, filhos do senhor Aureliano Braga Vilela, proprietário da contígua fazenda Pau d’Óleo. Os três ficaram pelos arredores do telheiro papeando, camuflando intenções, enganando a vigilância de dona Filomena com o fingir excessivo interesse no andamento da compota de pêssegos verdes, quase pronta, ebulindo no tacho.
O doce de pêssegos ficou pronto. Dona Filomena transferiu-o para latões, para esfriar. Os recipientes eram latas de mais ou menos vinte litros, estampadas com a marca do querosene “Jacaré” ou da gordura de coco “Carioca”, mas vendidas barato, lavadas e limpas, para as donas-de-casa pelos armazéns e vendas. Depois, dona Filomena despejou a massa de goiaba moída e peneirada no tacho, acrescentou um desperdício de açúcar, e mandou Zenilda, moça meio lerda que a estava ajudando, ficar mexendo a mistura enquanto ia à cozinha a fim de tomar café, buscar mais ingredientes para os doces e espairecer tagarelando com suas amigas. Nem bem ela desapareceu pela porta, os três malandrões puseram-se esbaforidamente em movimento. Pedro Paulo tirou de um esconderijo um saco de lona sujo e agachou-se atrás da fornalha. Com a ajuda de Baltasar, e com a supervisão crítica de Gaspar, começou a derramar no chão um rastro de pó, negro como carvão. Deixaram o saco, meio cheio, no fim da trilha escura, escondido por uma das grossas colunas de madeira que sustentavam o telheiro. Cobriram a trilha com a palha de arroz que juncava o chão. Em seguida, foram procurar Justino para acender o forno, pois Luzia precisava assar os pães de queijo. Quando o encontraram, fizeram questão de acompanhá-lo, alegando a pressa de Luzia em começar a assar as quitandas como motivo para ajudá-lo a acender o fogo.
A lenha já estava preparada, cortada em achas regulares. Dona Filomena — que já havia regressado da cozinha — e os rapazes ajudaram Justino a introduzir a lenha na abertura própria do forno, sobre um monte de gravetos e ramos secos, que ardeu imediatamente ao contato da brasa da binga usada por Justino para acender e fumar os seus palheiros. Os rapazes afastaram-se para um canto. Dona Filomena despachou Zenilda para a limpeza das enormes colheres de pau, com medo de que a menina bronca perdesse o ponto do doce. Justino inclinou-se para avivar a chama incipiente com sopros. Enquanto soprava, as fagulhas espargidas atingiram o rastilho de pólvora engendrado por Pepê, provocando uma explosão de luz e fumaça. O relâmpago atravessou quase todo o telheiro — pouco faltando para incendiar as saias de dona Filomena — e atingiu o saco escondido num estouro ensurdecedor. Dona Filomena, tendo escapado de virar uma tocha humana, teve ainda a sorte de tombar para a esquerda, ao desmaiar com o susto: se tivesse despencado para o lado contrário, certamente teria caído dentro do tacho, aonde agora borbulhava, feito um pequeno vulcão, a acobreada massa de goiabas para o “doce de cortar”.
(continua na próxima postagem)

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