quarta-feira, 19 de novembro de 2008

FIDELIDADE ASSASSINA (parte 4ª/5)

(continuação)
A ajudante Zenilda nem percebeu a queda de dona Filomena. Imediatamente após a explosão, branca como um lírio, dirigiu-se em desabalada carreira na direção da porta aberta da cozinha, procurando sossego e melhores companhias. Assim, não teve oportunidade de presenciar a reação de Justino. Ele apareceu no meio da fumaça, enquanto os três rapazes riam de rolar. Durante alguns segundos pareceu que ele ia direto para cima de Pedro Paulo. “Miserável... Eu vou acabar com você.”, pensou Justino, enlouquecido de raiva. Entretanto, passados alguns instantes, em que ele ficou olhando fixamente para Pepê, fez meia-volta, aproximando-se de dona Filomena para auxiliá-la a levantar-se. Em seguida, ajudou-a a caminhar, trôpega, até a cozinha, onde a esperavam, de olhos arregalados, Matilde, Lourdes, Luzia e também a dona da casa, dona Amélia, que acorrera dos seus aposentos para assuntar o motivo da algazarra.
As mulheres reavivaram dona Filomena sem muita dificuldade, com o simples recurso de verter-lhe pela goela abaixo um copo de água com açúcar. Dona Amélia, percebendo a recuperação da sua doceira, encaminhou-se para o portal, com a finalidade de descarregar sua irritação desancando os três velhacos. Agora já não mais tão hílares com as conseqüências da tramóia, mas ainda gozando a perturbada corrida de Zenilda e o ridículo desfalecimento de dona Filomena, eles ficaram observando, inquietos, o surgimento de dona Amélia sobre os degraus.
— Ô de casa! — chamou Tião, nesse momento, com voz nasalada, vindo pelo meio do terreiro de café. Trazia, sobre a cabeça, uma gamelona de madeira contendo dois belos perus assados, recheados com fina farofa de uva passa, presente mandado pelos seus patrões da fazenda Pau d’Óleo para os donos da Ouro Verde.
Com a chegada de Tião, ou por causa dos perus, dona Amélia desistiu de ralhar com Pedro Paulo e seus dois companheiros de fuzarca. O sermão que pretendia resmungar para eles ficou para o dia de são-nunca. Ela se apressou em receber os perus, determinando que Zulmira servisse café para o empregado da fazenda confrontante, enquanto pensava na maneira mais adequada e mais tradicional de retribuir o mimo enviado pela Teresinha, que era a vizinha sua comadre e velha amiga.
Quando o relógio da sala de visitas anunciou as seis badaladas indicadoras do fim da tarde, o problema de dona Amélia ficou resolvido. Na mesma gamela que trouxera os perus, acomodava-se agora uma leitoa assada, enfeitada com rodelas de limão galego e fitas de “papel” celofane verdes e vermelhas. Na falta de Tião, que não pudera esperar o preparo da leitoa e regressara à propriedade de seus patrões, dona Amélia resolveu designar Justino como o portador do seu presente para a comadre Teresinha. Entre as recomendações rotineiras com que atulhou os ouvidos de Justino, insistiu também, movida pela vaidade com que fitava a leitoa ataviada, para que ele entregasse o presente apenas para a sua comadre, e que prestasse atenção à cara que dona Teresinha fizesse, para lhe contar na volta. “Entregue somente a ela, e a ninguém mais”, remandou, enquanto ele descia os degraus da varanda.O protegido de dona Amélia, carregando a gamela recheada sobre a cabeça, embrenhou-se pela trilha aberta através do capim-gordura por pés humanos, cascos bovinos e eqüinos, e, em alguns lugares de mata alta, a golpes de machado, foice e facão. Caminhava automaticamente, como se cada passo fosse atraído pela picada que se desenhava adiante sinuosa e de rumo quase aleatório, porém evitando os troncos das árvores e outros obstáculos naturais. Seus pensamentos, uma balbúrdia. O bafafá com a pólvora no telheiro, tramado pelo Pepê e os outros dois abelhudos, deixara-o extremamente perturbado e magoado. As coisas seriam diferentes se não descambassem, de uma maneira ou outra, para as brincadeiras de mau-gosto: até que simpatizava com o Pepê, sempre de riso fácil e bom-humor contagiante. Só não gostava das petas. Além disso, a sua fidelidade à família do patrão obrigava-o a estender a todos a sua submissão, inclusive ao Pepê, malgrado suas brincadeiras idiotas. Mas Justino não tinha consciência que sua fidelidade à família não passava de mera retribuição à casa e comida que dela recebia. Por isso, o ressentimento que pesava sobre os seus ombros estava sempre presente, mais ou menos incômodo conforme as circunstâncias, mas abafado.
(continua na próxima postagem)

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